domingo, 24 de janeiro de 2016

O poder do feminino e a Religião da Deusa

 O poder do feminino e a Religião da Deusa


O poder do feminino

A mulher é sujeito privilegiado da bruxaria. O que faz dela bruxa é a sua posição desviante numa ordem dada: ela é associada à natureza; ela é tornada marginal como sujeito subordinado na ordem da dominação masculina; ela retém atributos que a diferenciam do ideal dominante, que é masculino. Nas últimas décadas, a mulher tem conseguido rever alguns aspectos de seu status social frente ao patriarcado. Com todos os ganhos de hoje, porque ela estaria disposta a retomar uma identidade vinculada à marginalidade e a atribuições tradicionais de gênero? Mas será que é isto que as bruxas modernas têm de fato buscado, quando decidiram, em primeiro lugar, tornarem-se bruxas?

Se o espaço da mulher não é ainda de plena igualdade com os homens, não é também possível dizer que nada mudou. O papel da mulher dentro da economia doméstica, apesar de tudo, foi o que sofreu a menor mudança. Embora ela seja hoje, muitas vezes, a única provedora do lar, ou pelo menos uma contribuinte importante, na maior parte das vezes o trabalho doméstico ainda é tarefa sua.

A bruxaria parece, como afirma Del Priore (1997), ser uma inversão do pejorativo feminino numa afirmação
de suas qualidades enquanto mulher. Se para os homens a menstruação continua parecendo algo impuro, na
bruxaria ela é divina e repleta de poder. Se a atividade da mulher como dona-de-casa ainda é vivenciada por muitas como uma submissão, na bruxaria ela é percebida como um espaço de liberdade para plantar ervas para feitiços, proteger a casa de influências nefastas, tomar conta da cozinha onde se utilizam vários instrumentos mágicos e realizar feitiços com o caldeirão, a taça, o athame (punhal), a varinha, a vassoura, entre outros.

Em suma, o que sugiro é que, dadas as mudanças na condição feminina, o que se viu nos últimos anos foi a perda, por parte da mulher, exatamente daquilo que fazia dela mulher. Ela continua a parir filhos, cuidar deles, da casa, da família, mas, ao entrar no mercado de trabalho, ela sofre uma transformação na tentativa de se manter competitiva e alcançar outros postos. As mulheres que trabalham fora não raras vezes deixam a casa nas mãos de uma empregada doméstica e os filhos nas mãos de uma babá ou parente. Em parte, elas perderam aquela ligação com o que era antes o mundo feminino, e perderam também aquela cultura feminina que o processo de modernização lhes roubou (Muchembled 1987). Assim, a bruxaria parece um caminho aberto para algumas mulheres recuperarem uma identidade feminina, uma cultura e um mundo feminino perdidos. Claro que essa recuperação não é a de uma velha rotina. As bruxas modernas trabalham, casam e têm filhos. Elas são mulheres do mundo contemporâneo, mas parecem buscar na bruxaria um pouco daquela velha condição feminina que lhes foi de certa forma roubada.

As bruxas entendem que a wicca é uma religião orientada para o feminino. Afirmam que a evocação da divindade feminina orienta a wicca para o feminino e vão além: para algumas, toda mulher é bruxa, isto é, “tem útero, é bruxa”. Essa afirmação desvenda o papel do útero na formulação do poder mágico dentro da bruxaria. É o poder de procriação, de gerar vida, que o útero traz implícito, e por isso ele se torna tão importante. Ele é um gerador de energia. É ele que faz a mulher ser mulher e faz da mulher uma bruxa, pois é um poder feminino.

No período inquisitorial, considerava-se que a bruxaria era um mal hereditário. Hoje a idéia persiste, mas a bruxaria, de mal, tornou-se um dom. Frazão (1995) afirma ser uma bruxa hereditária, que teria aprendido sua arte com suas avós e tias, também bruxas. Entre as bruxas brasileiras, é comum afirmarem que há outras bruxas na família, normalmente definidas pelo dom. Neste caso, costumam se referir a familiares mulheres mais do que a homens, o que parece reforçar a idéia de que a bruxaria é um esforço do feminino no sentido de organizar uma nova identidade. Formular uma história familiar que corrobore o sentido dessa identidade é fundamental, é um recurso de legitimidade da condição de bruxa.

De acordo com as bruxas pesquisadas, a wicca é um caminho tanto de busca quanto de transformação. Essa transformação é interna, uma mudança “em todos os níveis” que viria através da magia, dos rituais, das
práticas religiosas. Para as entrevistadas, a bruxaria modifica o seu praticante, sua maneira de ver o mundo ou o seu próprio Eu. Em outras palavras, poderíamos dizer que ela modifica a identidade pessoal subjetiva de seu praticante, sua percepção de si e do mundo.

Em um período marcado pelo predomínio da razão, como o que vivemos, uma prática mágica antiga é resgatada por um grupo de mulheres (e homens), de forma que a antiga ligação estabelecida entre bruxaria e
universo feminino retorna e a ligação entre a mulher e a natureza é destacada, de modo não a sofrer uma crítica, mas uma reafirmação. Esta situação formula, a meu ver, a intenção de construir um novo papel para a mulher na sociedade contemporânea, ou a intenção de marcar este novo papel.


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